domingo, 2 de outubro de 2022

Manifesto de um "homem que incomoda": 3 problemas que fundamentam o feminismo no Brasil

Por Maurício de Paula Kanno

Jornalista e mestre pela USP no tema Ética

2 de outubro de 2022

Fico feliz que um colega de um grupo exclusivamente masculino, com cerca de 140 homens, tenha considerado que foi minha presença no grupo que passou a causar incômodo ou discussões. Pois minha prioridade não é "evitar incomodar", mas posicionar-me firmemente como homem de valores e princípios.

O dever ético de cada um deveria ser lutar diariamente por mudanças em uma sociedade extremamente cruel e injusta, que é a nossa, principalmente o Brasil. E para isso algum incômodo é necessário - inclusive a mim mesmo. Só fica totalmente tranquilo quem se aliena e não percebe com consciência essa realidade à sua volta.

Obviamente na África e Oriente Médio, onde citaram haver os "reais problemas que o feminismo deveria atacar" - supostamente ao invés de "perder tempo" com questões do Brasil para as mulheres - há inúmeras crueldades e injustiças. Mas o q nós vamos conseguir fazer a respeito? Tem alguém aqui pronto para pegar em armas e derrubar o Taleban no Afeganistão, por exemplo; ou dar um jeito de proibir a mutilação genital feminina em todos os os países que realizam esse ato?

Porque, se for só pra lamentar sobre países distantes, não adianta nada... O que podemos fazer na prática pelas mulheres? Existem problemas graves no Brasil também para as mulheres? Só homens bem distraídos e carecendo de empatia para não notá-los. Para sintetizar, vamos focar em apenas três neste artigo:


1)

9% de representantes mulheres no Congresso Nacional

Existe uma extrema desigualdade no Congresso Nacional. Só 9% de representantes mulheres, comparado a uns 51% de mulheres na população brasileira. É um dos piores índices da América Latina.

Compare-se com os 49,2% de mulheres no Congresso de Cuba; sim, esse mesmo país condenado ao máximo pelos conservadores de direita por ser supostamente uma ditadura comunista, mas que tem educação e saúde de primeira linha. Enquanto a educação do Brasil é das piores do mundo.

Ou compare-se aos 40% de participação feminina na política em nossa vizinha Argentina, outro país ultimamente também condenado pelos conservadores de direita, por recentemente lá ter assumido um governo de esquerda.

Fonte: ( https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1068:catid=28&Itemid=23 )


2)

Pais fujões "abortistas" e mães solo ou de dupla jornada

Como segundo tema, eu colocaria a jornada dupla feminina. Frequentemente existe a defesa conservadora de que o aborto seja proibido, e até posso compreender o motivo de luta pela "vida" desde a concepção, ainda que discutível cientificamente.

Porém o fato é que geralmente, praticamente sempre, sobra pra mulher. Porque há por exemplo, registradas, 6,6% de mulheres mães solo: 11 milhões de mulheres únicas responsáveis pelas crianças. Na prática, é como se o pai tivesse "abortado" sua condição paterna. Nos quatro primeiros meses deste ano de 2022 por exemplo, mais de 55 mil crianças foram registradas sem o nome do pai.

Fonte: ( https://www.brasildefato.com.br/2022/05/09/cartorios-registram-crescimento-de-maes-solo-no-brasil-em-cinco-anos )

Mesmo que o pai pague pensão, quando paga, porque muitas mulheres desistem de cobrar essa mínima responsabilidade pelas dificuldades, o tempo dedicado pela mulher ao filho é extremamente maior (possivelmente, mesmo quando se considera um "pai responsável", que fica com o filho uma vez por semana, talvez isso represente 10% da dedicação da mãe, que geralmente fica com os filhos, como pude ouvir de uma mãe solo que cuida de dois filhos sozinha - com o pai ficando com as crianças uma vez por semana.

Ela acaba tendo que desistir, adiar ou dedicar-se com irrisório empenho a vários projetos de vida: profissionais, viagens, estudos, esportes etc pra cuidar do filho que gerou com um homem mas que direto este foge, pra viver "a vida dele", "pra pensar nele", fugindo da responsabilidade paterna.

Isso sem falar que, mesmo quando existe um pai, formalmente ou com alguma presença, maior ou menor, frequentemente os cuidados às crianças/filhos são geralmente - com exceções crescentes no século XXI - mais atribuídos às mulheres mães, como tradicionalmente, dificultando sobremaneira a dedicação delas à vida política, científica, esportiva, cultural, artística, etc. - o que por exemplo esclarece a ausência ou quantia relativamente diminuta delas no ranking de maiores destaques mundiais de personalidades históricas nessas áreas.


3)

Estupros por familiares e culpabilização das vítimas

Também há que se conseguir obviamente reversão gigantesca de caráter, cultura e reeducação crucial de consciência dos potenciais homens agressores que estupram mulheres, principalmente menores de idade. 85% das vítimas de estupro são mulheres, e 70% são crianças ou vulneráveis (77% menores de idade em 2022).

Só na primeira metade deste ano de 2022 (denúncias registradas até 21 de junho), foram 7.832 queixas, das quais imagina-se serem apenas uma parte do total de ocorrências reais). (Fonte: https://g1.globo.com/saude/noticia/2022/06/24/criancas-de-ate-11-anos-sao-36percent-das-vitimas-de-estupro-no-brasil.ghtml )

Por esse motivo, naturalmente há um receio de sair às ruas sozinhas (56% dos casos de estupros de mulheres adultas ocorrem de noite ou madrugada), ou até de crescer normalmente em casa, pois em mais de 84% dos casos, o estuprador é alguém de confiança ou familiar da vítima, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2019!

https://www.ufrgs.br/humanista/2020/12/17/cultura-do-estupro-85-das-vitimas-no-brasil-sao-mulheres-e-70-dos-casos-envolvem-criancas-ou-vulneraveis/

Para muito além da condenação desses atos horrendos criminosos em si pelos infratores, está, porém, a cultura de culpabilização da vítima. Frequentemente a mulher vítima é responsabilizada por seu próprio estupro, por eventualmente ter optado por sair à noite, ter escolhido uma roupa inadequada, passado por um local perigoso, ter demonstrado sensualidade, etc.

Como se o homem também não tivesse direito e usufruísse sua liberdade de vestimenta, deslocamento e exercício de sedução frequentemente. Além de que, como os dados estatísticos demonstram, boa parte dos estupros ocorre perpetrado por familiares ou pessoas de confiança da vítima, em sua própria casa.

***

"Femimimi e feminazi"

Espero que a descrição de apenas esses três problemas-exemplo selecionados, entre outros sofridos pelas mulheres no Brasil do século XXI, ajude a esclarecer e conscientizar o indivíduo que proclama "abominar", "ser contra o feminismo" ou considerá-lo "femimimi" ou "coisa de feminazi" (termos que ouvi frequentemente e sem contestação no grupo masculino).

Tal foi a postura da maior parte dos homens entrevistados em pesquisa de minha autoria em progresso. Espero que eles possam, por fim, compreender algumas das gravíssimas problemáticas enfrentadas pelas mulheres atualmente, que justifique o apoio enfático e engajado ao que se chama seriamente de movimento feminista no Brasil.

Espero que os colegas de meu grupo com mais de uma centena de homens, entre outros, sintam empatia por essa situação que afeta as mulheres - que poderiam também ser sua namorada, esposa, irmã, mãe, etc - e também concordem em solucionar essas situações injustas com essas pessoas do sexo oposto.

E que, assim, possa mudar fortemente o discurso enfaticamente isolacionista que li nesta sexta-feira (30 de setembro de 2022), segundo o qual "só você, Maurício, é feminista", no grupo desses 140 homens, como se fosse uma ofensa ridicularizante um deles assumir-se feminista. E parece mesmo ser a opinião geral, dado que ninguém se manifestou contra tal afirmação.


Guerra ideológica, seus rótulos e estereótipos

Imagino que o conservadorismo anti-progressista, inclusive associado à disseminação das igrejas evangélicas neopentecostais no Brasil, que parece ter eleito o feminismo como um de seus "inimigos", até mesmo "obviamente demoníaco e contra a Bíblia", como li de uma amiga evangélica, reine com força ainda no país.

Só espero que essa guerra ideológica se trate em boa parte principalmente de uma discordância apenas quanto ao que imaginam ser feminismo, só como um estereótipo propagado, ou seja, um grande mal-entendido sobre o que de fato o feminismo reivindica.

Pois em minha pesquisa com mais de 30 pessoas, mais de uma mulher até mesmo considerou que haveria um problema dentro do movimento: as chamadas "femistas" - termo novo para mim: mulheres que supostamente são feministas, se dizem feministas, mas são apenas pessoas rudes extremistas que não contribuem com essa justa causa de direitos humanos, apenas expressam outro tipo de ódio e afastam as pessoas que poderiam ser aliadas.

Suponho e espero eu que os tantos homens que se declararam contra o feminismo apenas expressam dessa forma seu trauma diante das reações exacerbadas, agressivas e raivosas dessas falsas feministas, confundindo-se quanto às reais necessidades das mulheres.


Hierarquização sexista e revolta contra "influencers" e "sugar babies"

Porém, não duvido de que haja ainda muitos homens - e mulheres conservadoras machistas - que concordem com, por exemplo: a baixa representatividade das mulheres no Congresso Nacional - pois "homens é que devem exercer o poder, é função masculina" -; a obrigação quase que exclusiva feminina de cuidar dos filhos; e até mesmo que acreditem na culpabilização da mulher quanto ao estupro de que foi vítima.

Enquanto a lógica cultural tradicional de hierarquização sexista persistir na cabeça de tantas pessoas, e tal padrão de pensamento se mantiver sem questionamentos na educação pública e privada, seguirá um futuro sombrio na vida das mulheres de nossa sociedade.

Espero que os homens que se preocupam tanto em seduzi-las, sintam desejo sexual e afetivo por relacionamento com as mulheres, em algum momento parem de dar tanta atenção ao supérfluo das "influencers" que se exibem no Instagram, Tinder e OnlyFans; e parem de reclamar sobre o desapego amoroso das suas pretendidas (clássico fenômeno contemporâneo do amor líquido de Bauman); ou sobre o materialismo e interesse financeiro de outras, intituladas "sugar babies".

Que algum dia passem a observar problemas sócio-políticos muito mais graves, que afetam concretamente as vidas de nossas parentes, amores e vizinhas co-habitantes deste planeta Terra. Como os apresentados nos três tópicos acima, presentes até hoje por herança histórica em nossa sociedade.

3 comentários:

disse...

Ótimo artigo! Comovente, contempla minha biografia em mais momentos do que gostaria de reconhecer. Complementaria com uma frase que ainda vem surgindo efeito aqui dentro de mim, em que diz "nada é pessoal, tudo é sistêmico". Vivemos hoje em grande desequilíbrio familiar. Do masculino e o feminino dentro de nós. Você foi o único a ser hostilizado neste grande grupo, e aqui te digo: Que prazer em te reconhecer! Sou abraço contigo, onde estiveres só com a voz de quem sofre, e também de quem ama.

Aos demais homens, apenas o tempo e a vida poderão ensinar. Tenho fé neles também e os amo, porque tudo pode ser transformado. O Amor e a Verdade nos libertam.

As mulheres tiveram que "ser fortes" em contrapartida da mão pesada do homem no tempo e da desconexão de Si. Quando o homem deixar de forçar e cair em si, um Novo Mundo vai se abrir. E os homens tiveram que ser duros e insensíveis no tempo por questões suspensas na ancestralidade, tanto do pai, quanto da mãe, quem buscar conhecer a Si e a própria história com verdadeiros olhos, verá. E tudo será clareza. Assim creio, porque assim é. Não existem vítimas e culpados, existem pessoas que sofreram e repassaram esse sofrer por se encontrarem a sós com tamanha dor. Quanto é triste! Quando descobrimos que de fato jamais estivemos sós, o alento começa a tomar conta de quem vai se dando conta (muitas vezes na ponta dos extremos).

Desejo sucesso, caro Maurício. A beleza de estar em contato real com a própria história permite SER história integrada e transformar realidade. Equilíbrio ao nosso Brasil e ao mundo. Grata, Camila.

Anderson Borges Costa disse...

Uma reflexão justa e relevante. Em dias de ódio, ignorância e preconceitos elevados à enésima potência, o silêncio em nada ajuda a esclarecer os menos informados. É preciso gritar, escrever, discutir e se manifestar contra a ignorância que tem nos levado a caminhar para trás em séculos. O seu texto contribui para jogar luz em nossos dias de trevas e trovões. Parabéns, Maurício!

Anônimo disse...

Querido sobrinho Maurício, que texto lindo , importante e complexo, você nos representa, sendo um feminista , li e reli pra entender que falta muito pra nós mulheres,mas nunca desistirmos. Parabéns, vc é um grande escritor, tenho orgulho de você , bjs sua tia Sandra.